O mundo inconveniente de Aria (manga)

Aria: The Masterpiece, Volume 1
No planeta Aqua, uma vez conhecido como Marte, Akari Mizunashi faz seu novo lar na cidade de Neo-Venezia, uma imitação futurística da antiga cidade de Veneza. Em busca do seu sonho de se tornar um Undine — uma gondoleira que conduz passeios de alta qualidade pela cidade — Akari se une como aprendiz a Aria Company, uma das três empresas mais prestigiosas de guia aquático em Neo-Venezia. Lá, ela explora a beleza da cidade e o mundo junto com outras aprendizes de Aria e empresas rivais, trabalhando duro pelos sonhos dela e fazendo novas amizades no caminho.

Aria traz calma e graça na sua simplicidade e na sua natureza idílica. No entanto a beleza da obra é transmitir bem o sentimento de respirar, de parar e de apreciar o momento; valorizar o ócio, o erro e a inconveniência.

Desde início o cenário de Aria atrai atenção pelo contraste. A obra se passa na era moderna (2300) em Marte, a tecnologia avançou tanto que foi possível terraformar outro planeta.  Contudo Aqua, e principalmente Neo-Venezia, vive em condições de séculos atrás, quase utópico: tudo é inconveniente e todos preferem o vagaroso. O lugar poderia ser de fato a antiga Veneza sem o cenário futurístico, mas ao criá-lo o autor deixa uma mensagem bem clara.

Certamente o mundo era um lugar complicado sem eletricidade, congeladores e revolução industrial.  Hoje tudo é rápido, eficiente e produtivo, podemos está vivendo na melhor era da humanidade. Não precisamos esperar meses, uma viajem de navio, uma enorme tripulação e muitos recursos consumidos só para saber notícias de um continente distante. Apenas alguns minutos navegando na internet é necessário. Os avanços e esforços da humanidade possibilitaram a otimização e controle do seu recurso mais vital e escasso: o tempo. Mas, e agora o que fazer com ele?

A modernidade é tão obcecada com produtividade que não há espaço para o ócio, apenas negócio. A tecnologia deixou de ser mera ferramenta de ajuda no cotidiano, agora ela consome seu tempo. Nunca houve tanta produção de conteúdo como hoje, embora a maior parte seja ruído. Um mundo cheio de conveniências, gratificações instantâneas e distrações, onde não é necessário pensar ou tomar decisões por si. Há apps pra quase tudo, te oferecendo “escolhas”, mas só as previamente selecionadas. Algoritmos em mídias sociais que sempre te recomendam conteúdo com base nos seus interesses e perfil, te colocando numa bolha. Empresas coletando suas informações, propagandas personalizadas e direcionadas disputando sua atenção, monetizando seu tempo, te transformando em um produto. Um modelo educacional que mata a criatividade e aptidões individuais para ser tornar produtivo e padronizado, seguindo uma linha de montagem industrial.  Esse é o lado sombrio da conveniência. Um sistema que diz: você tem escolhas, você é livre, mas você está preso até a alma por ele.

Acabamos numa encruzilhada: justo a coisa que nos esforçamos tanto pra valorizar, perdeu-se na modernidade. A rotina de multitarefas e produtividade nos acostumou a olhar pra telas e desprezar nosso entorno, esquecer o ordinário. Agora muitos estão em piloto automático, distraídos, desatento das coisas importantes pra si. Existem sem viver.

Fazer mais nem sempre é melhor. Às vezes pressa traz ansiedade, estresse, medo e burnout. Quando há caos a melhor ação a tomar é parar e respirar. Desacelerar traz clareza, ajuda a reorganizar prioridades. Desplugar e ficar ocioso nos torna criativos. Há até uma palavra pra ficar ocioso e não fazer nada: niksen. Só você e sua mente vagando.  Na Lentidão se faz pouco, mas traz a liberdade de apreciar cada pequena realização. O mundo pode ter ficado mais rápido e produtivo, porém coisas importantes demoram tempo. Essas são as mais recompensadoras e gratificantes.

Culturalmente ociosidade não é visto com bons olhos hoje, mas nem sempre foi assim. Na antiguidade pensadores, como Platão, viam o ócio como meio de alcançar a verdade; inclusive a palavra escola deriva de ócio.

Esse descontentamento com a modernidade fica evidente quando olhamos os valores e sentimentos da Akari quando se refere a Terra. 

Akari chega ao novo mundo e se perde num barco com um carteiro, observa a rotina e barcos em todos os lugares. Então o carteiro diz que naquela cidade, mesmo numa era de viagens espaciais, tudo depende de barcos. Apesar disso ele acha a experiência relaxante. Akari então confessa:

“Eu sou da Terra. Em todo canto as cidades são lindas e organizadas. Tudo é muito metódico. Diferente daqui, pessoas podem comprar, trabalhar e fazer tudo de casa. É muito conveniente. E ainda… O aspecto de uma cidade conveniente e organizada me causa um sentimento de insatisfação…”

Capítulo 1 de Aqua

Outro passagem que reflete bem a essência do lugar é capítulo 1 de Aria, não por menos é chamado Neo-Venezia. 

Akari encontra um senhor perdido e decide ajudá-lo, embora este negue está perdido. O sujeito é apressado e ranzinza. Akari o guia pela paisagem linda do outono e tenta chamar sua atenção, porém ele só se importa com seu dispositivo. Em dado momento o senhor reclama que se Neo-Venezia fosse organizado como a Terra ele nunca teria se perdido. Então Akari responde, que na Terra é impossível se perder, mesmo que alguém desejasse. Com o passar da tour Akari mostra as vantagens do mundo inconveniente, o senhor se abre e aprecia a paisagem e então encontra-se de novo.

“Em outras palavras, algumas coisas você nunca encontrará a menos que faça um erro ou perca seu caminho…”

– Adendo –

Apesar de Aria ser considerado uma obra prima do slice of life e iyashikei me traz sentimento misto. A obra é linda, mas também inconsistente e demasiadamente longa. Alguns capítulos são enfadonhos e sem inspiração, Aria poderia se sair bem com 6 ou 7 volumes sem eles. O volume de conclusão é apressado, como se a autora tivesse só esse volume pra amarrar as pontas soltas e concluir a série. De súbito Alice, Aika e Akari se tornam undines (ondinas) num intervalo de tempo muito curto entre eles, causando um sentimento artificial. Alicia se aposenta e tem um casamento, mas até então o noivo nunca nos foi mencionado, o que é estranho. Alicia parecia amar sua profissão e era a melhor no ofício, mas de repente larga tudo e entra no mundo corporativo da Associação de Gôndolas, por quê? Certamente Aria poderia ter um trabalho de edição mais enxuto e um final melhor desenvolvido.

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *